Natureza jurídica do trabalho temporário

Filipe Lamelas, CoLABOR

A complexidade da realidade jurídica em apreço advém da existência de dois negócios jurídicos distintos, de caráter bilateral, com repercussões jurídicas em três sujeitos, determinando a partilha do exercício dos poderes típicos do empregador entre duas entidades diversas e, no polo oposto, um único sujeito que se compromete a executar a sua prestação sob autoridade e direção de um terceiro. 

Essa especificidade é determinada pela existência de dois negócios jurídicos de natureza distinta. Por um lado, um contrato de prestação de serviços celebrado entre a ETT (empresa de trabalho temporário) e o utilizador e, por outro, um contrato de trabalho celebrado entre a ETT e o trabalhador. Tal especificidade molda todo o conteúdo das relações estabelecidas. No entanto, a ligação estabelecida entre os negócios mencionados não é meramente exterior ou acidental.1 Pelo contrário, embora o contrato de utilização e o contrato de trabalho mantenham a sua individualidade, o que determina que a sua especial conexão não possa reconduzir-se a uma unidade contratual – não se tratando, por isso, de um negócio jurídico unitário com meras declarações complementares –, ambos estão profundamente ligados. 

Esse nexo funcional influencia a disciplina jurídica de ambos os negócios, tratando-se, desta forma, de “um vínculo substancial que pode alterar o regime normal de um dos contratos ou de ambos, por virtude da relação de interdependência que eventualmente se crie entre eles”.2 Nesse sentido, podemos afirmar que a triangulação provocada pela articulação destes negócios jurídicos consubstancia uma união de contratos.3 

Tradicionalmente, a doutrina distingue entre a união externa, isto é, quando “dois ou mais contratos surgem como materialmente unidos, sem que entre eles se estabeleça qualquer nexo com relevância jurídica”, a união interna, nas situações em que “uma das partes – ou ambas – celebrem um contrato, subordinadamente à celebração de outro” e a união alternativa, que ocorre “sempre que a concretização dum contrato afaste a celebração de outro”.4 

No trabalho temporário, a prestação delimitada pelo contrato de trabalho temporário corresponde à “prometida” pela ETT no contrato de utilização, reconduzindo-se a celebração de ambos os negócios jurídicos ao mesmo fundamento. Se, por um lado, essa interdependência constitui “uma forma de tutela do trabalhador temporário que garante a transparência de toda a operação”,5 por outro, permite vislumbrar a singularidade da finalidade económica prosseguida através da pluralidade de negócios, estabelecendo-se entre eles “um vínculo de dependência ou complementaridade que faz com que as vicissitudes de cada um dos contratos sejam suscetíveis de se refletir sobre os restantes”,6 o que permite classificar esta figura como união interna de contratos. 

Por sua vez, essa união ou coligação de contratos pode ser unilateral, se as alterações verificadas num dos contratos tiverem reflexos no outro e vice-versa, ou bilateral, quando “um dos contratos tem predomínio sobre o outro e só as vicissitudes do primeiro se repercutem no segundo”,7 e voluntária ou necessária, consoante dependa ou não, exclusivamente, da vontade dos contraentes. Assim, o trabalho temporário caracteriza-se por ser uma união de contratos unilateral (ou parcialmente bilateral) – na medida em que as vicissitudes do contrato de utilização se repercutem no contrato de trabalho, mas nem todas as vicissitudes deste contrato se repercutem no contrato de prestação de serviço 8 – e necessária, porque se trata de uma relação natural entre os negócios, independente da vontade das partes.9 

A coligação contratual distingue-se comummente, no que respeita à sua estrutura, entre união genética ou funcional. Na primeira hipótese, um “dos contratos apenas produz efeitos sobre o outro na fase de formação, mas a partir daí, durante a respetiva execução, não se regista qualquer interferência e os vínculos permanecem autónomos”,10 ao passo que, na segunda situação apontada, o destino dos negócios jurídicos está ligado, não apenas na fase da respetiva formação, mas também no desenvolvimento e funcionamento das relações deles emergentes. A figura do trabalho temporário, deve, por isso, ser classificada como uma união de contratos funcional, porquanto o contrato de utilização não produz efeitos somente na fase formativa do contrato de trabalho temporário. Ao invés, o desenvolvimento e funcionamento dos negócios jurídicos em apreço encontra-se intimamente ligado, em virtude da sua interdependência funcional, transcendendo a fase formativa. 

Em suma, podemos classificar o trabalho temporário como uma união interna de contratos unilateral,11 necessária e funcional,12 o que determina a interligação de efeitos entre os dois contratos. 

 


1 Situação que João de Matos Antunes Varela, Direito das Obrigações, p. 288, caracteriza como uma mera “junção de contratos”. 

2 João de Matos Antunes Varela, Direito das Obrigações, p. 289. 

3 Segundo a classificação de Pedro Romano Martinez, Da cessação…, p. 250, “coligação de contratos”. Conforme refere Maria Regina Gomes Redinha, A relação laboral fragmentada…, p. 174, “a união de contratos não é destituída pela falta de identidade dos sujeitos, bastando-se com a existência de um participante comum nos vínculos conexionados.” 

4 António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, p. 429. 

5 Júlio Gomes, “Algumas observações…”, p. 59. 

6 Maria Regina Gomes Redinha, A relação laboral fragmentada…, p. 174. 

7 Pedro Romano Martinez, Da cessação…, p. 246. 

8 Nesse sentido, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, p. 642. Ou seja, no fundo, as repercussões do contrato de trabalho temporário são mais ténues, esporádicas e diminutas relativamente ao contrato de utilização do que as deste relativamente ao contrato de trabalho. 

9 Conforme refere Pedro Romano Martinez, Da cessação…, pp. 246 e 247, na coligação voluntária, “os sujeitos, no domínio do princípio da liberdade contratual, podem pretender que dois contratos, em que são partes, fiquem coligados entre si. Diferentemente, na coligação necessária, a relação entre os dois negócios jurídicos fica a dever-se, não a uma expressa vontade dos contraentes nesse sentido, mas à existência de uma relação natural entre os dois contratos, que pode ser económica ou teleológica”. 

10 Maria Regina Gomes Redinha, A relação laboral fragmentada…, p. 174. 

11 Ou tendencialmente unilateral, em virtude de, em algumas situações muito particulares, as vicissitudes decorrentes do contrato de trabalho se poderem repercutir no contrato de utilização, devido à sua interdependência funcional. 

12 No entanto, nas situações em que o vínculo laboral tenha sido estabelecido através da celebração de um contrato de trabalho por tempo indeterminado para cedência temporária, conforme refere Júlio Gomes, “Algumas observações…”, p. 59, estaremos perante uma “coligação ocasional”.