Trabalho Digno e Negociação coletiva

Filipe Lamelas e Pedro Rita

O desenvolvimento da contratação coletiva encontra-se intimamente ligado à expansão do Estado Social, sendo indissociável do próprio conceito de democracia. Um dos seus mais importantes propósitos é potenciar a redistribuição dos recursos. No entanto, nas últimas décadas, esse escopo foi posto em causa.

Antes de 2003, o contexto jurídico nacional, no que à dimensão coletiva das relações de trabalho diz respeito, previa o monopólio dos sindicatos na negociação e celebração de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho. O princípio da filiação, que determinava a eficácia pessoal direta das convenções coletivas relativamente aos trabalhadores filiados nos sindicatos e associações patronais representadas, também era um dado adquirido. O princípio do tratamento mais favorável (cujo sentido era o de os instrumentos de regulamentação coletiva apenas poderem dispor em sentido mais favorável do que a lei) era outra das traves-mestras do sistema: a negociação partia sempre de um mínimo adquirido. A reforçar essa ideia, o facto de todo este sistema assentar numa lógica de vigência indeterminada das convenções coletivas, que se mantinham em vigor até serem substituídas por outras.

As alterações legislativas introduzidas com o Código do Trabalho de 2003 (CT2003) tiveram repercussões profundas no equilíbrio negocial entre as associações patronais e os sindicatos, com o notório enfraquecimento da posição negocial das associações representativas dos trabalhadores, e determinaram a própria reconfiguração do modelo da negociação coletiva.

Reflexo dessa realidade é o facto de o número de convenções coletivas celebradas ter atingido, em 2004, um mínimo histórico à data, sem precedentes no período democrático: levando em consideração a média dos últimos dez anos anteriores à entrada em vigor do CT2003 (1993-2003), o número de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados ficou-se, sensivelmente, pela metade. Nos anos subsequentes, ainda que se tenha verificado um aumento do número de convenções subscritas, a verdade é que a média desses anos seguintes (2004-2009) é significativamente inferior ao período que antecedeu a entrada em vigor do CT2003 (1998-2003).

A contratação coletiva é uma das dimensões presentes na Agenda do Trabalho Digno apresentada pelo atual Governo português. De entre as medidas relativas à contratação coletiva previstas nessa Agenda, sobressai, desde logo, a proposta referente à arbitragem necessária como a mais adequada e apta a cumprir os objetivos da reforma legal anunciada de revitalização da regulamentação coletiva negocial. Contudo, o sucesso e adequação desta medida aos fins proclamados pela Agenda do Trabalho Digno dependerá, largamente, da fórmula legal concreta em que se vier a concretizar, sendo real o risco, caso a alteração do regime não seja a mais acertada, de o resultado obtido ser contraditório ou oposto ao pretendido.

As relações de trabalho em Portugal, na sua dimensão coletiva, podem, atualmente, ser descritas como um corpo híbrido – cuja categorização exige um estudo atento –, resultante de um conjunto de alterações e somas de enxertos que impedem o seu enquadramento num género típico. Essa atipicidade do modelo de relações coletivas de trabalho nacional pode revelar-se como uma das suas principais virtudes, em particular a capacidade de adaptação a um leque plural de reformas.