Determinação do empregador numa relação de trabalho temporário

Filipe Lamelas, CoLABOR

A admissibilidade do trabalho temporário, concretamente da constituição de empresas cuja atividade consiste na contratação de trabalhadores para posteriormente proceder à sua cedência, veio inverter a conceção clássica de empregador, passando o trabalhador a assumir os seus deveres laborais perante dois sujeitos distintos. 

Conforme refere Maria do Rosário Palma Ramalho, é a conjugação dos critérios objetivo e subjetivo que permite uma completa definição do conceito de empregador. Assim, por aplicação de um critério objetivo, o empregador “pode definir-se como o credor da prestação laboral e o devedor da retribuição que lhe corresponda”, ao passo que, em termos subjetivos, surge como o “titular dos poderes de direção e disciplina que correspondem à posição de subordinação do trabalhador”.1 

No trabalho temporário assistimos à fragmentação desses poderes e, consequentemente, da subordinação do trabalhador: o utilizador surge, numa perspetiva objetiva, como credor da prestação laboral – pelo menos, parcialmente – e, numa lógica subjetiva, como o titular dos poderes de direção dependentes da efetiva execução da atividade desempenhada pelo trabalhador. No entanto, também a ETT é credora da prestação laboral e titular dos poderes de direção, ainda que de forma limitada, e de disciplina. 

A cisão dos poderes laborais é reveladora da dissociação entre empregador formal e beneficiário da prestação laboral, o que determina uma nova conformação da realidade laboral. Esta solução permite ultrapassar problemas ligados à funcionalidade do poder de direção na relação triangular, na qual a contraparte do contrato de trabalho não corresponde ao titular da organização produtiva onde o trabalhador presta o seu serviço. 

Por sua vez, pode afirmar-se que a fonte jurídica que legitima as vertentes do poder de direção atribuídas à ETT é o contrato de trabalho por esta celebrado com o trabalhador, sendo ela a titular dessas faculdades, ao passo que o utilizador beneficia somente do seu exercício efectivo,2 em virtude de uma atribuição ex lege.3 Apesar de alguma doutrina 4 se referir ao exercício desses poderes como uma “delegação de poderes”,5 em bom rigor, é a própria lei que determina o exercício do poder de direção na sua vertente conformativa ao utilizador. 

Por seu turno, as singularidades do trabalho temporário acabam por funcionar como limites ao exercício desses poderes por cada um dos sujeitos que os detêm, vedando em diversas situações uma maleabilidade ou conformação da prestação laboral nos moldes permitidos por uma relação laboral típica. Isso não significa que o utilizador esteja inibido da prática de atos normais decorrentes do poder de direção. Pelo contrário, estes são-lhe atribuídos em bloco, devendo a sua execução verificar-se nos termos normais de uma relação de trabalho comum. Nomeadamente, além dessas faculdades que se reportam à vertente conformativa da prestação o utilizador exerce, também, um poder de controlo ou “superintendência” da própria atividade desempenhada pelo trabalhador temporário, verificando e conferindo a sua conformidade com as diretrizes emanadas, como também pode sujeitar o trabalhador às regras de vigilância e registo existentes no seio da sua estrutura organizativa,6 com respeito, obviamente, pelos direitos de personalidade. 

Diferentemente, no que respeita ao exercício do seu poder de direção, a ETT vê a sua margem de atuação limitada pelas particularidades da relação estabelecida em virtude da cedência e pela funcionalidade da própria figura. Assim, conforme refere Rosa Pérez Yáñez, a atuação daquela empresa encontra-se circunscrita, no essencial, às matérias respeitantes à formação profissional.7 No entanto, mantém na íntegra a titularidade do poder disciplinar, não sendo admissível ao utilizador qualquer ingerência a esse respeito, apesar dos factos que, eventualmente, constituam um ilícito disciplinar ocorrerem sob a sua autoridade e direção. Contudo, atendendo ao dever geral de boa-fé na execução dos contratos, sempre se dirá que o utilizador deve comunicar quaisquer factos relevantes à ETT para que esta, se assim o entender, proceda disciplinarmente. 

É neste contexto que cumpre proceder à determinação do empregador na relação de trabalho temporário. Tradicionalmente, a ETT surge como o sujeito preferencial para a assunção desse papel. É ela quem contrata o trabalhador, o remunera, exerce o poder disciplinar e determina os termos da sua prestação laboral através da cedência, surgindo como contraparte no vínculo estabelecido e, acima de tudo, como “destinatária” da subordinação jurídica. Apesar dessa realidade, a imputação da qualidade de empregador à ETT não se encontra isenta de problemas porque, conforme refere Maria Regina Gomes Redinha, a atribuição desse estatuto repousa, quase exclusivamente, na “competência disciplinar”, cujo “exercício, porque descarnado da autoridade e direção, encontra-se funcionalmente subordinado ao poder diretivo do utilizador”.8 Por outro lado, também a identificação do utilizador como empregador se depara, desde logo, com o obstáculo resultante da subtração do poder disciplinar da sua esfera jurídica, além de equivaler “à negação do trabalho temporário e ao aniquilamento das finalidades, próprias ou desvirtuadas, da ‘contratação indireta’, conduzindo inevitavelmente à identificação da ETT com a agência de colocação”.9 

Para obviar aos perniciosos resultados que poderiam advir de uma separação entre empregador “de facto” e empregador “de direito”, a doutrina 10 pronunciou-se no sentido de no trabalho temporário se verificar uma cisão do estatuto do empregador, conferindo a titularidade do vínculo laboral à ETT mas admitindo a partilha do seu conteúdo entre esta empresa e o utilizador. 

Efetivamente, existe uma cisão do estatuto do empregador nesta relação triangular, na medida em que é patente a “dissociação entre a entidade condutora do processo produtivo e o centro de imputação da relação jurídico-laboral” que conduz ao “fracionamento das competências11 típicas da entidade empregadora. A própria legislação evidencia bem esta fragmentação, ao determinar que o utilizador é a entidade que ocupa, sob a sua autoridade e direção, os trabalhadores temporários, sujeitando-os ao regime de trabalho aplicável na sua organização produtiva no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, segurança, higiene e saúde no trabalho e acesso aos seus equipamentos sociais, ao mesmo tempo que estipula que à ETT compete proceder à contratação e pagamento da retribuição desses trabalhadores, reservando-lhe também o exercício do poder disciplinar. 

No entanto, essa cisão do estatuto do empregador revela-se, para o trabalhador, como uma “geminação” ou “duplicação” de empregadores, na medida em que passa a estar subordinado a dois credores distintos da prestação de trabalho, sem que se verifique também a respetiva fragmentação dos seus deveres laborais. Assim, por exemplo, os deveres de respeito, urbanidade, zelo, diligência, obediência e lealdade são-lhe exigidos, na mesma medida e intensidade, relativamente a ambos. Ou seja, se é certo que se verifica uma demarcação clara relativamente àquilo que cada um dos credores pode exigir, o mesmo não sucede relativamente ao reverso desses poderes: o trabalhador temporário encontra-se subordinado juridicamente à ETT e ao utilizador, de forma indistinta e sem a correspetiva delimitação dos deveres a que está adstrito. 

Outra manifestação do reconhecimento da dualidade de empregadores inerente ao trabalho temporário foi a consagração de um regime híbrido no que respeita à consideração dos trabalhadores temporários para efeitos de aplicação do regime relativo às estruturas de representação coletiva dos trabalhadores: serão considerados trabalhadores da ETT ou trabalhadores do utilizador, consoante as matérias em causa digam respeito a um ou outro. 

No trabalho temporário, “coexistem duas entidades que exercem funções típicas de empregador”,12 que repartem o exercício dos poderes inerentes a essa posição, e essa fragmentação, apesar de manter intocada a unidade da entidade patronal enquanto contraparte do contrato de trabalho, afeta de sobremaneira a subordinação jurídica do trabalhador que, classicamente, era encarada como o reverso da medalha do poder de direção. Por isso, esta modalidade contratual pressupõe um entendimento diverso da conceção clássica e aproxima-se de uma situação de “coemprego” ou até da pluralidade de empregadores no plano da subordinação jurídica e dos correlativos poderes de direção e disciplinar. Contudo, ao mesmo tempo, mantém o risco inerente à assunção do estatuto do empregador na esfera da ETT, surgindo, assim, o utilizador como um empregador “subsidiário”, que, no entanto, exerce a sua autoridade e direção sobre o trabalhador. 

 


1 Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho…, pp. 310 e 311.

2 No mesmo sentido, Valdez Dal-Ré, “Poder directivo, contrato de trabajo y ordenamento laboral”, Relaciones Laborales, 1993, p. 80, e Rosa Pérez Yáñez, “El reparto entre empresa de trabajo temporal y empresa usuária…”, p. 141. 

3 Nesse sentido, pronunciou-se, também, Júlio Gomes, “Algumas observações…”, p. 62. 

4 Paula Camanho, Miguel Cunha, Sofia Pais e Paulo Vilarinho, “Trabalho Temporário”, p. 187. 

5 Sobre a delegação de competências, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 663 ss. 

6 No mesmo sentido, Rosa Pérez Yáñez, “El reparto entre empresa de trabajo temporal y empresa usuária…”, p. 148. 

7 Rosa Pérez Yáñez, “El reparto entre empresa de trabajo temporal y empresa usuária…”, p. 149. 

8 Maria Regina Gomes Redinha, A relação laboral fragmentada…, p. 181. 

9 Maria Regina Gomes Redinha, A relação laboral fragmentada…, p. 182. 

10 Nesse sentido, a título exemplificativo, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Iniciação ao Direito do Trabalho, 3.ª edição, Lisboa, Verbo, 2005, p. 248, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, p. 674, Guilherme Machado Dray, “Trabalho temporário”, p. 103. 

11 Maria Regina Gomes Redinha, A relação laboral fragmentada…, p. 185. 

12 Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, p. 407.