O exercício do ius variandi

Filipe Lamelas, CoLABOR

Podemos definir o direito de variação como uma faculdade unilateral – normalmente vedada – do empregador, que permite, mediante a verificação de determinados pressupostos específicos, encarregar o trabalhador, temporariamente, de funções não compreendidas na atividade contratada.1 O ius variandi afirma-se “duplamente perante o objeto do contrato de trabalho: opera à margem dele, mas também por referência a ele”.2 Ao contrário do que sucede nas situações de polivalência, não tem de existir qualquer semelhança ou conexão entre a atividade normalmente prestada e a exigida por força do direito de variação, consistindo, na prática, num alargamento da prestação,3 externo aos limites daquela atividade.4 

O fundamento da figura relaciona-se com a necessidade de assegurar, dentro do possível, a normal laboração em determinada organização produtiva em situações de “necessidades de mudança de técnica, alteração dos mercados, iminência de perigos e falta de mão-de-obra”, consubstanciando “um plano de emergência de reorganização e divisão de trabalho, o que implicará uma alteração ou redistribuição das funções dos trabalhadores”.5 

O exercício do ius variandi por parte do empregador está dependente da verificação dos requisitos. Assim, para que a exigência do exercício de funções não compreendidas no objeto do contrato seja lícita é necessário que se verifiquem dois tipos de requisitos: um primeiro grupo de caráter material e um segundo corpo de pressupostos de conteúdo formal. 

 

1. Requisitos materiais 

O empregador pode, quando o interesse da empresa o exija, encarregar temporariamente o trabalhador de funções não compreendidas na atividade contratada, desde que tal não implique impossibilidade de modificação substancial da posição do trabalhador. 

a) Interesse da empresa

O interesse da empresa 6 é normalmente entendido em sentido objetivo, correspondendo a necessidades sérias, legítimas e razoáveis da organização produtiva, fundamentais à satisfação das suas finalidades próprias, entendido como uma “referência às exigências da organização, ou seja, à correta aplicação de regras técnico-organizativas”.7 Esse interesse é aferido pelas próprias circunstâncias que o ditam, quer se trate de “situações externas de força maior à empresa (alterações dos mercados e técnicas, perigos iminentes), quer momentos de crise originados no âmbito da própria organização produtiva (falta de trabalhadores, necessidade de conversão técnica)”,8 com recurso às noções de normalidade, tipicidade e experiência.9 

b) Temporaneidade

Este requisito faz apelo ao caráter transitório 10 ou temporário – delimitado no tempo – da necessidade subjacente ao direito de variação funcional, sob pena de se verificar uma alteração do próprio objeto do contrato, sem o consentimento de um dos contraentes, neste caso, o trabalhador. 

c) Impossibilidade de modificação substancial da posição do trabalhador

O requisito relativo à impossibilidade de modificação substancial da posição do trabalhador, decorrente da execução de funções não compreendidas na atividade contratada tem sido alvo de diversas considerações jurisprudenciais.11 Numa completa síntese dos fatores interpretativos deste conceito, Catarina Carvalho 12 indica: “posição hierárquica do trabalhador”, o que se traduz no facto de este “não poder ser colocado numa situação hierárquica injustamente penosa (com caráter vexatório ou humilhante, tendo em conta a posição na empresa, na sociedade, etc.)”, devendo “tal posição corresponder, no organigrama da empresa, a uma outra igual ou próxima da categoria profissional do trabalhador.”;13prestígio ou dignidade profissional do trabalhador”, significando que “as novas funções não podem ter caráter vergonhoso ou humilhante para este, diminuindo a sua imagem perante o público em geral ou, mais especificamente, perante os outros trabalhadores, independentemente da sua posição hierárquica”; “tutela das potencialidades e perspetivas profissionais do trabalhador”, que, na prática, significa que este não terá de executar determinadas tarefas “no caso de manifesta falta de aptidão para o efeito”, ou se, por outro lado, o desempenho dessas funções “impedir a realização de expetativas razoáveis de promoção”; “necessidade de existência de uma afinidade entre a natureza da tarefa ordenada e a categoria profissional do trabalhador”, o que implica que as funções acometidas “devem inscrever-se na área das que antes exercia”. Se é certo que os critérios apontados, na sua generalidade, se revelam úteis para concretizar o conceito, parece-nos que o último fator indicado desvirtua e atenta contra o próprio direito de variação da atividade. A afinidade de funções, conforme referimos anteriormente, reporta-se à polivalência funcional, entendida a atividade contratada como compreendendo as funções afins ou funcionalmente ligadas. Admitimos, contudo, que a ordem de variação não será lícita se o trabalhador não tiver preparação técnica adequada, ou seja, no que toca à execução técnica poderá verificar-se a necessidade de uma semelhança das funções exercidas a título transitório e as que constituem o objeto do contrato.14 

Por outro lado, poderá também haver modificação substancial se da ordem do empregador ocorrer uma alteração significativa do tempo ou espaço de trabalho no qual as funções são desempenhadas. Da mesma forma, por força do princípio geral da boa-fé e do decorrente dever de mútua colaboração, somos levados a concluir que a ordem de alteração de funções deverá ter em conta a intensidade do sacrifício exigido ao trabalhador, atendendo, nomeadamente, às suas condições pessoais e concretas. 

Finalmente, cumpre referir que o ónus da prova relativamente ao preenchimento destes requisitos materiais, impende sobre o empregador, nos termos gerais do art. 342.º do Código Civil.15 

 

2. Requisitos procedimentais (formais)

Por imperativo legal, é necessária a indicação das razões que fundamentam o recurso ao ius variandi: enumeração dos motivos que justificam o direito de variação funcional, relacionando-se essa menção com o interesse da empresa, indicação da duração previsível dessa faculdade e adequação dos motivos invocados com a duração da alteração do exercício de funções.16

A vantagem desta solução legislativa (introdução de requisitos formais) possibilita o controlo externo dos próprios requisitos materiais, permitindo ao julgador, nomeadamente, aferir sobre o tipo de necessidade em jogo, a sua duração previsível e o nexo de causalidade entre os dois elementos enunciados. 

 

3. Proibição da diminuição de retribuição e direito ao tratamento mais favorável

Admitindo-se, nos termos legais, a variação in peius,17 o legislador consagrou um mecanismo de proteção do trabalhador, sendo que o exercício temporário de funções não compreendidas na atividade contratada não pode implicar a diminuição da retribuição, caso a essas tarefas for atribuído um estatuto remuneratório inferior. 

Por outro lado, estabeleceu-se, ainda, que, como consequência do exercício temporário de funções não compreendidas na atividade contratada, o trabalhador tem direito ao tratamento mais favorável correspondente às tarefas efetivamente desempenhadas. A referência às vantagens inerentes à atividade temporariamente desempenhada, significa que o trabalhador terá direito não apenas a um eventual acréscimo retributivo, mas também a todo o conjunto de prestações feitas direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie, devidas pelo desempenho daquelas funções.18 

 

4. Consequências do recurso ilícito ao ius variandi 

A preterição dos pressupostos materiais e dos requisitos formais acarreta a ilicitude da ordem emanada pelo empregador, fazendo cessar o respetivo dever de obediência do trabalhador, recusando assim a ordem de alteração do objeto do contrato, nos termos gerais prescritos no segundo segmento da norma contida na alínea e), do n.º 1 do art. 128.º do Código do Trabalho.19 Mais, em determinadas circunstâncias, verificados os requisitos para a resolução com justa causa, o trabalhador pode resolver o contrato, ou formular um pedido de indemnização por danos não patrimoniais.20 

 

 


1 Trata-se, efetivamente, de uma situação de mobilidade externa, ou seja, do exercício de funções que não se compreendem na atividade contratada, categoria ou grupo. 

2 Monteiro Fernandes, “Categoria…, p. 150. 

3 Luís Miguel Monteiro, “Da vontade contratual na configuração da prestação de trabalho”, RDES, XXXII, n.os 1-4, Coimbra, Almedina, 1990, p. 317; e Catarina Carvalho, “O exercício…, pp. 1031 e 1041, rejeitam a justificação do ius variandi com base no instituto da alteração das circunstâncias (art. 437.º do Código Civil), entendendo que se trata de uma exceção ao princípio pacta sunt servanda, consagrado no art. 406.º do Código Civil. Diferentemente, Mário Pinto, Furtado Martins e Nunes de Carvalho, consideram que o direito de variação em apreço não representa qualquer desvio à contratualidade, antes encontrando-se o seu fundamento no princípio da boa-fé e no dever de mútua colaboração que dele decorre. 

4 Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2005, p. 709, refere que “para haver ius variandi torna-se necessário que a alteração determinada pelo empregador esteja em contradição com o programa contratual […] concretamente, que se imponha a realização de uma atividade diversa”. 

5 Bernardo da Gama Lobo Xavier, Curso…, p. 328. Nesse sentido, o mesmo autor, “A determinação qualitativa da prestação de trabalho”, ESC, n.º 32, p. 27, explica que “no sentido da vida moderna pode surgir a todo o tempo a necessidade de uma mudança de técnicas, ou uma crise, ou uma alteração dos mercados, que comprometa a eficácia do esquema de divisão de trabalho em que se alicerça a fixação contratual do tipo de atividade a desenvolver pelo trabalhador. Por um lado, não poucas vezes acontecerá que os próprios acidentes da vida da empresa, a iminência de perigos ou a falta de alguns trabalhadores, venham embaraçar decisivamente o processo produtivo, se ao estorvo não se der pronto remédio, através de um novo plano de organização de trabalho”. 

6 O Estatuto de los Trabajadores expressa esta ideia de forma mais concreta: faz apelo a razões técnicas ou organizativas e, quanto à variação para categoria inferior, refere-se a necessidades perentórias ou imprevisíveis da atividade produtiva. 

7 Pedro Madeira de Brito, Código…, p. 476, acrescentando que “partindo do pressuposto de não ser possível a atribuição de um interesse à organização em si (não é possível um interesse sem titular singular ou coletivo), acaba por reconduzir as exigências da empresa a um critério típico de valoração do interesse próprio do sujeito que predispôs a organização para alcançar os seus fins”. 

8 Catarina Carvalho, “O exercício…, p. 1041. 

9 Pedro Madeira de Brito, Código…, p. 476. No que concerne à sindicabilidade judicial deste pressuposto, entende o autor que “ao juiz cabe verificar se existe uma alteração na organização que justifique a utilização da faculdade. Nestes termos, se se verificar a ausência de um trabalhador num determinado posto de trabalho, ao juiz cabe avaliar da existência do facto e da sua suscetibilidade de pôr em causa o funcionamento da empresa, segundo critérios típicos de normalidade técnico-organizativos. Ao juiz não cabe aferir da bondade da solução obtida pelo empregador, ou seja, se a solução encontrada (o exercício do ius variandi) é a mais adequada sob pena de entrarmos numa gestão judicial da empresa”. 

10 Efetivamente, Pedro Madeira de Brito, Código…, p. 477, entende que “a ideia de temporaneidade no ius variandi melhor se expressaria pela designação de transitoriedade”. 

11 A título exemplificativo, Ac. do STJ, de 27.06.1990, AD, n.º 348, p. 1614; Ac. do STJ, de 25.10.1990, BMJ, n.º 400, 1999, p. 493; Ac. do STJ, de 29.09.1999, CJ, 1999, t. III, p. 256. 

12 Catarina Carvalho, “O exercício…, p. 1049.

13 O que, em termos práticos, se traduz, no nosso entendimento, por exemplo, na impossibilidade de, em virtude do ius variandi, o destinatário da ordem, passar a receber ordens e instruções de outros trabalhadores em posição hierarquicamente inferior, em termos da organização produtiva. 

14 Admitindo a eventual necessidade de semelhança, o que concerne à execução técnica, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Curso…, p. 329, referindo, no entanto, a necessidade de averiguação casuística. 

15 Estabelece o n.º 1 desse preceito que “àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado”. 

16 Pedro Madeira de Brito, Código…, p. 478, “fundando-se o ius variandi na existência de um interesse da empresa, o empregador só pode exigir a variação nas funções até ao limite de tempo que é exigido pela razão empresarial que determinou o exercício do correspondente poder”. 

17 Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho…, p. 221.

18 Nas palavras de Catarina Carvalho, “O exercício…, p. 1056, o trabalhador tem direito a “todas as manifestações de estatuto hierárquico ou funcional que àqueles serviços sejam reconhecidos (viatura, cartões de crédito, despesas de representação)”. 

19 Nesse sentido, Pedro Romano Martinez, Direito…, p. 712; e Pedro Madeira de Brito, Código…, p. 479. 

20 Pedro Romano Martinez, Direito…, p. 712.